No aquarismo marinho, principalmente na época de calor, há uma procura muito grande por meios de refrigerar o aquário. Na correria e tentando economizar dinheiro, muitos aquaristas fabricam chillers caseiros com tubulação de inox e acabam por criar sem saber uma bomba relógio nos seus aquários.
A primeira coisa que precisamos deixar claro é que não há problema nenhum no uso de chillers feitos em casa. Os chillers são equipamentos de refrigeração muito simples cujos materiais são facilmente encontrados em lojas que fazem manutenção ou vendem equipamentos para geladeira e afins. O problema real está na tubulação que vai fazer a troca de calor da água com o gás refrigerante.
Os chillers
Os chillers comerciais são fabricados usando ligas de titânio para fazer a troca térmica dos gás refrigerante com a água do aquário. Essas ligas de titânio são matérias extremamente resistentes à corrosão, tão resistentes que nunca nem sequer ouvimos falar de corrosão nesse tipo de tubulação mesmo depois de anos de uso.
Conhecemos dois modelos mais comuns dos chillers. A primeira é com o uso de uma serpentina de titânio onde o gás refrigerando que sai do compressor passa dentro e a água do aquário passa por fora. A segunda versão é que a água passa dentro de um tubo de titânio que é envolto em uma tubulação metálica, geralmente cobre, onde a troca térmica é feita do gás para o tubo de cobre, do tubo de cobre para o tubo de titânio e do tubo de titânio para a água.
Os dois modelos são muito funcionais e práticos quando feitos com essas ligas de titânio, mas muda completamente quando são feitas de outras ligas devido à oxidação. Usar ligas metálicas diferentes de titânio podem causar sérios problemas.
O inox e a oxidação
O inox é uma liga de aço bastante versátil pela sua difícil oxidação e é utilizado no dia a dia de todas as pessoas. Com esse material são feitas panelas, bancadas, ferramentas, placas, tubos, janelas, objetos de decoração e o que mais for adequado.
Como dissemos logo acima, o aço inox oxida, diferente do que muita gente pensa, mas de uma maneira muito mais lenta que o aço comum. O motivo do inox oxidar de maneira muito lenta é devido ao efeito que o cromo e outros metais (como o níquel) em sua composição fazem com o material.
O aço inox tem ao menos 11% de cromo em sua composição podendo ter também outros elementos como níquel, molibdênio e manganês que alteram as propriedades desse aço.
Bom, o que importa pra gente aqui é entender que esse cromo no aço inox cria uma camada protetora, denominada de camada passiva, que impede com que o aço oxide. A imagem abaixo retirado de[1] mostra como o cromo reage com o oxigênio e produz uma camada superficial muito fina que, como uma armadura, protege o aço dos agentes oxidantes.
Agora que explicamos isso tudo você deve estar se perguntando por qual motivo então o aço inox oxida facilmente no chiller do aquário marinho se o inox tem uma camada protetora. A resposta é bastante simples: a camada protetora é perfurada pelos cloretos da água salgada!
Todo mundo se preocupa com o cálcio, magnésio e carbonatos da água do aquário e por isso acaba esquecendo que mais da metade dos íons presentes na água salgada são de cloretos!
Cada litro de água do mar tem na média cerca de 17 gramas de cloretos!
A imagem abaixo exemplifica como esse fenômeno, chamado de pitting na indústria, ocorre. O cloreto encontra pontos mais favoráveis e vai perfurando a camada passiva da mesma forma que a cárie vai perfurando o nosso dente.
É assim que os tubos de inox acabam perfurados quando utilizados nos chillers dos aquários marinhos. Alguns duram mais, outros duram menos, tudo dependendo da espessura do tubo, da composição e da qualidade do aço utilizado.
Corrosão galvânica
Como se já não bastasse a corrosão da água no tubo de inox, tem outra corrosão bastante comum nesse tipo de projeto que é a corrosão galvânica ou corrosão eletrolítica.
Esse tipo de corrosão corrosão acontece quando dois metais diferentes estão em contato entre si e na presença de um eletrólito como a água, inclusive a umidade do ar. Existem ambientes mais agressivos que aumentam esse tipo de corrosão e a água salgada é um deles.
Na corrosão galvânica os metais acabam trocando elétrons entre si e um metal sofre o efeito da corrosão e o outro sofre uma deposição de material. Esse é o princípio de funcionamento de algumas pilhas e baterias.
No caso o metal com menor potencial galvânico (ânodo) desse par cede elétrons ao metal com maior potencial galvânico (cátodo). Durante essa doação de elétrons, parte do metal é desprendido e a corrosão acontece.
A imagem abaixo mostra as diferenças de potenciais galvânicos de diversos materiais em contato com a água salgada a uma temperatura de 10ºC. É preciso lembrar que esse potencial galvânico depende de uma série de fatores como material, disposição do sistema, eletrólito,etc.
Pra explicar melhor a tabela acima, vamos dar alguns exemplos.
Um par metálico de alumínio (aluminium) com aço carbono comum (carbon stell), devido aos seus potenciais galvânicos, fazem com que o alumínio seja o ânodo e o aço carbono o cátodo, logo o alumínio será corroído.
Um par metálico de aço carbono comum e de cobre(copper) faz com que o aço comum seja o ânodo e o cobre o cátodo, logo o aço carbono será corroído.
O aço carbono funcionava como ânodo no primeiro exemplo e como cátodo no segundo exemplo, tudo depende da diferença de potencial galvânico dos metais em contato.
Como dissemos lá no começo, as ligas de titânio tem uma taxa de corrosão complemente desprezível, por isso é o material mais indicado para esse tipo de serviço, porém é bem mais caro. Por outro lado, o inox é muito mais susceptível à corrosão, porém é mais barato que o titânio.
Como não há motivo pra falar do titânio, vamos falar só do inox daqui pra frente que é o tema desse texto.
Bom, voltando aos chillers, essa corrosão galvânica pode acontecer de duas formas: ou no contato da tubulação do compressor com a serpentina ou no contato da tubulação de inox com a tubulação do tubo de cobre.
No caso do uso de uma serpentina de inox e o material do compressor de alumínio ou aço carbono, o alumínio ou aço carbono tende a ser corroído ao invés do inox. É preciso que a ligação entre a serpentina de inox seja feita adequadamente e geralmente não há problemas desse tipo de coisa e há poucos casos de corrosão do alumínio a ponto do gás refrigerante escapar.
Já no caso do cobre e do aço inox nos casos que a água passa dentro do tubo de inox que está enrolado numa serpentina de cobre problemas podem ocorrer.
Muitas ligas de aço inox tem um potencial galvânico menor que o cobre, o que significa, como já dissemos, que haverá uma corrosão no inox.
Também sabemos que envolta do aquário marinho o sal se espalha, seja por manusear as coisas tendo a mão com água salgada ou pelas gotículas de água que se espalham de diversas formas. Isso tende a aumentar a taxa de corrosão galvânica.
Somado a corrosão do cloreto ao inox e a corrosão galvânica temos como resultado muitos problemas.
O primeiro problema é que se houver vazamento do gás, o chiller pode ter seu funcionamento comprometido e num dia de calor a água do aquário pode esquentar e causar mortes dos seus habitantes.
O segundo problema é caso vaze água do aquário. Mesmo que não seja um quantidade significativa, pode espalhar pelo móvel, pelo chão, atingir material elétrico e causar muitos problemas indiretos.
O ferro, o níquel e o cromo
Como se os problemas citados não fossem suficientes, o inox corroído vai liberar seus constituintes na água do aquário, principalmente ferro, níquel e cromo que são os elementos mais significantes da sua composição.
O ferro é um elemento que não causa problemas, desconhecemos qualquer resultado negativo, já os outros dois...
O níquel pode ser tóxico em concentrações bem pequenas na água, em coisa de dezenas de microgramas. Uma micrograma equivale a 0,001 ppm, o que é uma quantidade realmente pequena.
A imagem abaixo retirada da fonte[8], a fonte mais completa em se tratando de contaminação por níquel, mostra algumas concentrações de níquel e seus efeitos em alguns artrópodes como gamarídeos e misídeos, bastante conhecidos no aquário marinho.
LC50 significa que houve morte de metade da população testada. No caso, LC50(96h) significa que metade da população morreu em 96 horas de exposição à uma determinada concentração de níquel.
O cromo, embora menos tóxico que o níquel, também é tóxico. A imagem abaixo retirada de [9] mostra o efeito do cromo e de outros metais em duas poliquetas, sendo um uma espécie de verme de fogo. O mais interessante dessa tabela é que mostra que nesse caso o cromo foi mais tóxico que o chumbo e pouco menos tóxico que o cobre.
Também é interessante ver que a concentração de cromo para LC50 foi de 5 mg/l em 96h e diminui para 0,28mg/l em para LC50 em 28 dias no caso do Capitella Capitata adulta. Esse é um exemplo bastante comum de como um elemento tóxico em pequena quantidade causa um resultado prejudicial no longo prazo.
Qual será o efeito de uma exposição de uma dose pouco acima do tolerável em 1, 2 ou 3 anos em peixes e corais? Não há relatos sobre isso, mas não consigo ver bons resultados disso.
Também há o efeito da bioacumulação desses metais nos organismos.
As bactérias e o fitoplâncton absorvem os metais da água. O zooplâncton se alimenta dessas bactérias e fitoplâncton e também retém os metais no seu organismo. Por fim, nossos peixes e corais consomem esses organismos e estocam esses metais em seus organismos causando problemas no longo prazo.
Mesmo que esses metais não estejam em quantidade tóxica, a exposição prolongada desses metais pode causar problemas de saúde e reduzir a expectativa de vida dos animais do aquário.
Segurança sempre
Nós da Aquários Sobrinho prezamos sempre pela segurança dos aquários e dos aquaristas. Não utilize tubo de inox nos seus aquários marinhos de forma alguma!
Caso seja um aquário de água doce (não pode ser água salobra), não há problema nenhum em usar um chiller feito com tubo de aço inox, o problema está mesmo nos cloretos presente na água salgada e da corrosão galvânica.
Referências
[1] https://www.walter.com/pt_BR/surfox/processo-de-passivacao
[2] Elfström, B.-O. (1980). The effect of chloride ions on passive layers on stainless steels. Materials Science and Engineering, 42, 173–180. doi:10.1016/0025-5416(80)90026-9
[3] Ma, Fong-Yuan. "Corrosive effects of chlorides on metals." Pitting Corrosion. InTech, 2012.
[4] Natishan, P. M., O’Grady, W. E., Martin, F. J., Rayne, R. J., Kahn, H., & Heuer, A. H. (2011). Chloride Interactions with the Passive Films on Stainless Steel. Journal of The Electrochemical Society, 158(2), C7. doi:10.1149/1.3520000
[5] Zhang, B., Wang, J., Wu, B., Guo, X. W., Wang, Y. J., Chen, D., … Ma, X. L. (2018). Unmasking chloride attack on the passive film of metals. Nature Communications, 9(1). doi:10.1038/s41467-018-04942-x
[6]https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3438430/mod_resource/content/1/Galvanica_HGM_2017.pdf
[7] http://www.worldstainless.org/Files/issf/non-image-files/PDF/Euro_Inox/Contact_with_Other_EN.pdf
[8] Eisler, Ronald. Nickel hazards to fish, wildlife, and invertebrates: a synoptic review. No. USGS/BRD/BSR--1998-0001. GEOLOGICAL SURVEY WASHINGTON DC, 1998.
[9] Reish, D. J., et al. "The effect of heavy metals on laboratory populations of two polychaetes with comparisons to the water quality conditions and standards in Southern California marine waters." Water Research 10.4 (1976): 299-302.
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